segunda-feira, 13 de junho de 2011

nossas miçangas...

blodetis... hoje não vou falar de moda, beleza, viagens... Hoje só quero ficar em silêncio... Buscando cada miçanga -minha- espalhada pelo chão....


Separem um tempo para ler estas ricas palavras...

AS MIÇANGAS DAS RELAÇÕES
Natércia Tiba

Me sinto privilegiada no trabalho que exerço. Frenquentemente me perguntam como aguento passar o dia vendo e ouvindo sofrimentos, dores, problemas, choros e até mesmo desespero. Há sim de tudo isso um pouco, ou muito de cada, mas o que me mantém firme é ver as pessoas diante de mim mobilizadas para achar uma saída de um sofrimento que passou do suportável.
Não raro me deparo com pessoas descrentes, que consideram-se “caso perdido” e que estão ali a pedido de alguém ou até mesmo levados pela mão até o sofá da minha sala. Seja como for, estão ali e isso já é para mim uma razão para admirá-las.
Mas por onde começar quando a pessoa já deu sua luta por encerrada?
Começo pelo “nós”. Quando há um encontro entre duas pessoas, existe o “eu”, o “tu” e o “nós”. Acredito que as relações mais saudáveis são aquelas que despertam o melhor que há no “eu” e no “tu”, formando um “nós” respeitoso e grandioso. Quando o “tu” está enfraquecido, fragilizado, em grande sofrimento, e o “eu” está forte, este pode emprestar suas forças por um período e assim, mesmo que servindo de suporte e/ou colo, há o início de uma caminhada.
Em geral, as caminhadas são árduas, exigem reencontros dolorosos da pessoa com ela mesma e com aqueles que são significativos em sua vida, mas o fato de existir um “nós” torna as coisas mais leves. No encontro há troca de olhares de acolhimento, sorrisos e algumas vezes boas gargalhadas. O caminho é único com cada paciente. A cada 50 minutos (tempo de uma sessão) entro numa nova jornada. Sou mesmo muito privilegiada.
Mesmo os pacientes mais sofridos ou aqueles levados ao consultório por “tus” preocupados e mais fortalecidos, o fato de estarem ali diante de mim, mesmo que prostrados, estão dando o melhor que podem, que seja apenas um olhares, lágrimas ou um profundo silêncio.
Este é o momento que irá determinar se estaremos juntos ou não neste caminhar. Minha primeira preocupação não é a queixa principal, mas sim formar o “nós”, criar um vínculo que irá num crescente rumo à entrega, cumplicidade, confiança e esperança.
Para cada um o encontro ocorre de uma forma. Não existe um “nós” igual ao outro. Eu poderia ficar páginas e páginas contando lindas situações do nascimento dos “nós”, cada qual com sua peculiaridade e encantamentos. Uns fluem com facilidade, outros vão aos ‘trancos e barrancos’, precisam de empurrõezinhos ou um aquecimento “emocional”. Outros parecem que nunca acontecerão e de repente, como que por encanto, surge uma entrega e nasce o “nós”. Como num bebê a nascer, há partos naturais simples, uns mais complicados, cesáreas e até mesmo uso necessário do fórceps.
Hoje, o que quero contar, é o nascimento de um “nós” que me emocionou muito entre um “eu”, psicoterapeuta de 36 anos e um “tu” miudinho de 3 anos de idade, uma linda menina de pele de porcelana e cachinhos castanhos.
Seria sua primeira sessão comigo. Não costumo atender crianças tão pequenas. Em geral, quando as crianças são menores de 4, prefiro atendimentos familiares ou orientação para os pais. Mas neste caso, após uma sessão com a mãe, achei que seria importante atendê-la sozinha.
Quando cheguei na sala de espera, ela estava sentada entre a sua mãe e uma enorme caixas de miçangas coloridas. Nas suas pequeninas mãos segurava um colar metade feito, metade por fazer. Com uma destreza impressionante, ainda mais pela pouca idade, Marina, como a chamarei aqui, levantava o fio e colocava certeira dentro do furo da miçanga, que era tão pequena que chegava a sumir em meio aos seus dedinhos.
Fui cumprimentando a mãe, que já conhecia e Marina soltou um ‘oi’ quase que sussurrado, sem parar o que fazia. Só estávamos nós 3 na sala de espera. Aquela situação da Marina fazendo o colar foi muito convidativa para mim. Adoro trabalhos manuais e o colorido daquela caixa me deixou hipnotizada.
Sentei perto de Marina, ao lado da caixa de miçangas e perguntei o que fazia. Ela disse que estava fazendo um colar e que ainda faltava muito pra acabar, como quem diz: “Agora não vou a lugar nenhum”. Perguntei se podia mexer na caixa e ela concordou com a cabeça. Eu estava realmente fascinada com todas aquelas cores e brilhos e talvez por ter apenas filhos meninos, tantos tons de rosa, que não fazem parte do meu universo.
Por enquanto, o que Marina me oferecia era a possibilidade de mexer na sua caixa, o que é bastante, já que eu era uma desconhecida. Fui explorando com cuidado, perguntando quem havia feito as pulseiras e colares que estavam prontos e assim, aos poucos, fui conhecendo várias pessoas que eram importantes pra ela: a tia, a madrinha, a avó… estavam todas ali, representadas por lindos e coloridos colares e pulseiras.
Peguei nas mãos cada colar, cada pulseira mas não coloquei em mim. Não tinha ainda essa intimidade. Marina, com seus apenas 3 anos comentou: “Eles são de fio de silicone e não de fio de nylon. O fio de nylon arrebenta quando abre muito mas esse não, esse abre bastante.” Me lembrando do relato da mãe, da situação complicada que Marina vivia, na hora pensei na metáfora do fio. Sem dúvida Marina era um fio de silicone, e estava esticado em seu limite, mas e fosse de nylon, certamente já teria se rompido (o que emocionalmente equivaleria a se desestruturar).
Ficamos uns 10 minutos nos conhecendo através da caixa. Aos poucos ela foi me perguntando se eu sabia fazer colares, que cores eu mais gostava e assim ela foi percebendo o “tu” que estava diante dela e muito interessado em seu universo.
Convidei-a então para que continuássemos nosso papo na minha sala e ela disse: “Tá bom, eu vou, mas a gente pode levar a caixa?” Concordei na hora: “Claro! Nem pensei em deixar essa caixa maravilhosa aqui. Vamos levá-la conosco!”. Ela então falou: “Então eu levo o colar assim, pra não cair tudo e você leva a caixa. Mas será que você consegue? É muito pesada!” e lá fomos as duas em parceria percorrendo o corredor que leva à minha sala.
Que linda metáfora encontramos desde o início. Eu já sabia um pouco da história dela, sabia que ela tem um mundo interno riquíssimo, que é muito desenvolvida para a pouca idade que tem, mas que o olhar direto poderia ser invasivo e sendo assim, a caixa de miçangas foi um verdadeiro tesouro na nossa aproximação.
Ao entrarmos na minha sala, ela foi direto para o sofá e eu a acompanhei, apoiando a caixa com todo cuidado.
Meu mundo interno também é muito rico e fiquei pensando na simbologia de tudo aquilo, no significado das miçangas, nos brilhos e cores tão intensos e vivos mas que Marina mostrava apenas quando queria e para quem queria.
Acho que todos nós somos assim não somos? Temos nossas miçangas coloridas e lindas, mas nem sempre nos permitimos mostrar com receio de que isso demonstre um descompromisso com a vida, uma responsabilidade, afinal, conforme crescemos, se não tomarmos cuidado, as cores vão se tornando cada vez mais pálidas e quando nos damos conta, já estamos imersos num mundo preto e branco, com variações de cinza.
Dentro da caixa, além das miçangas, haviam potinhos para guardá-las. Potinhos pequenos, cilíndricos, transparentes. Marina me propôs empolgada: “Vamos guardar as miçangas nos potinhos?”. Cuidadosa e organizadamente fomos colocando-as nos potinhos. Quando ficaram cheios e tampados, pedi a ela se podia colocá-los sobre a mesa lateral do sofá, onde havia um raio de sol. Ela adorou a idéia e lá fomos nós. Colocamos os potinhos sob o raio de sol e as miçangas brilharam mais do que nunca.
Naquele momento, aquela caixa representava seu mundo interno e achei que pra ela seria importante ver que naquele lugar, poderíamos iluminar e ver toda a beleza daquele mundo que ela trazia.
Ficamos um tempo observando em silêncio, até que ela disse: “Agora vamos colocar miçangas de outras cores!” e de repente algo inesperado aconteceu. Marina abriu um dos potes, o que continha as menores miçangas, bolinhas minúsculas brilhantes e “acidentalmente” derrubou tudo no chão. As miçangas pularam pela sala e o chão ficou todo iluminado por aquelas bolinhas.
Inicialmente achei lindo, mas olhei pra ela e vi que ficara desapontada, falando baixinho: “Eu não vou conseguir pegar. Elas são muito pequenininhas…” Foi então que tive uma oportunidade linda de mostrar a ela o quanto eu estava disposta e era capaz de recolher o que ela esparramasse na minha sala. Eu estava ali disposta a acolher o que ela tivesse pra espalhar e derramar, que fossem dores, lágrimas, medos, incompreensões ou mesmo miçangas.
Pedi a ela que sentasse num cantinho e com carinho e minha paciência oriental fui recolhendo cada uma delas e colocando dentro do potinho. Eram tão pequenas que eu não conseguia pegá-las com os dedos. Passei a pressionar os dedos sobre elas, que grudavam em minha pele permitindo que fosse recolocadas no potinho que Marina segurava.
Marina não escondia o espanto ao me ver recolhendo as pequenas miçangas. Aos poucos passou a me orientar: “Tem uma ali olha! Agora embaixo do sofá… Ih, tem uma que você não vai alcançar… Alcançou!” até que não havia sobrado mais nenhuma no chão.
Quando terminamos, ganhei um delicioso abraço, um abraço que dizia: “Puxa, posso mesmo confiar em você. Você é capaz de dar conta de mim.”
Eu disse a ela então que aquela caixa continha muitas preciosidades e que cuidaríamos muito bem dela. Guardamos tudo e fechamos. Estávamos prontas para começar uma jornada. Havia um “nós” formado numa mútua entrega. Que momento único e especial!
Tudo isso pode parecer uma viagem, algo puramente interpretativo, mas o resultado, a forma como nos ligamos depois desse momento é o que me confirma que, aquela situação foi o caminho para que o meu “eu” encontrasse o “tu” de Marina.
Tudo estava dito ali: a riqueza de seu mundo interno, meu interesse e curiosidade por ela, meu encantamento, minha capacidade em respeitá-la e acolhê-la, a possibilidade de espalhar-se e derramar-se e poder sair inteira.
Essa é a linguagem da criança, esse é o universo infantil, lindo, puro e encantador. É uma pena que deixamos com que ele vá se apagando e tudo vai se tornando tão mais complexo.
Estou contando à vocês sobre um encontro terapêutico, com certas peculiaridades, mas será que no dia-a-dia, nas nossas relações familiares e de amizade, paramos para olhar e nos encantar? Ajudamos o outro a recolher os pedaços que ficam espalhados por dores devastadoras? E confiamos aos outros que nos ajudem a recolher pedaços nossos que se espalham deixando buracos que geram medos e angústias?
O encontro, sempre ele, precioso, delicado, fonte de vida e de amor. O “nós” que nos torna humanos, solidários e cúmplices dessa condição delicada e angustiante de estar-no-mundo, sozinhos mas juntos, sempre.

Boa semana Blodetis...

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